A Senhora da Carroça,


faz-me lembrar de ti avó, talvez pela idade, por ser magra e seca, pelos seus cabelos brancos ou pela roupa preta; talvez seja um pretexto para te dizer que tenho tantas saudades tuas e que me fazes muita falta; ou talvez seja essa uma desculpa para quando a vejo passar da minha janela me lembre de ti. Vejo-te na janela do teu segundo andar. Lá fora é Outono e os pássaros fazem muito barulho, pareces não te importar com isso, estás ali de pé serena e em silêncio. Na bancada da cozinha há tigelas de marmelada e frascos de café com geleia, mas cheira a croissants de chocolate da Macuta, uma novidade acabada de chegar e pedes-me para ir buscar um para cada uma. Mas não faças leite avó, porque deixas sempre aquela nata e eu não gosto. A cozinha ainda cheira a peixe frito, estiveste horas de volta do fogão a fritá-lo e a fazer sopa de peixe. A mim apetecia-me comer aquele bife com molho e as tuas batatas fritas. Sim, antes do almoço eu vou lá abaixo buscar o pão. Sabes avó eu agora faço a sopa de peixe com a massa de cotovelos e a folha de hortelã, é quase igual à tua e o meu filho sabe que fazias esta sopa melhor que ninguém. Sentamos-nos no sofá ao som do relógio da sala de estar, eu deito a cabeça no teu colo e sei que voltas a falar comigo assim  que terminares o teu terço. Olho para o teu cabelo e penso: é tão bonito! E, as mãos como são também bonitas. Contam uma vida e contam com lentidão e  afinco as contas do terço. Na minha mão esquerda uso hoje a tua aliança de casamento, a aliança que me deixaste para quando eu casasse. Mas é hora de ir andando, os meus primos estão quase a chegar do colégio e já tens companhia, amanhã ou depois eu volto cá. Amanhã ou depois sei que irei resgatar da memória momentos teus e no meu silêncio vou encontrar as tuas palavras. A minha já sabes qual é, saudade.

A senhora da carroça tem noventa anos. Sempre a vi a passar assim. Quando o Tomás era bebé e ouvia o som da carroça eu dizia-lhe que se não comesse, aquela senhora levava-o na carroça dela (que cruel...!). E, ele comia. A minha avó costumava dizer-nos a nós primos que se não comêssemos vinha a cigana. O Tomás cresceu e a senhora ainda passa na mesma rua, da mesma maneira, a diferença é que hoje o Tomás acena-lhe e ela sorri. 

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